Texto originalmente publicado na coluna Palavra & Presença, no portal da FAJE. (Link)

Novas tecnologias modulam o mundo do trabalho de forma cada vez mais rápida e intensa. Se antes elas afetavam as gerações por vir, hoje demandam atenção contínua ao longo da vida laboral. O imaginário popular está repleto de previsões alarmistas a esse respeito, principalmente quando a conversa envolve inteligência artificial (IA). A angústia gerada por ela parece peculiar, mas o que é, de fato, novo na forma como ela influencia o trabalho?

Um fator importante é que a IA promete ir além da automação de tarefas e substituir o ser humano em larga escala. Se ela for capaz de emular a mente humana, quem precisará de professores, programadores, motoristas como nós, essas criaturas débeis e cheias de quereres como descanso e lazer?

Uma IA com nível de inteligência humano (ou mesmo superior), recebe hoje a alcunha de inteligência artificial geral (AGI, para artificial general intelligence). Muitos supõem que sua criação é iminente, mas filósofos e pesquisadores dedicados ao tema conhecem bem o profundo abismo que nos separa de uma AGI. Talvez essa incredulidade surpreenda, afinal, somos diariamente bombardeados com notícias de avanços e grandes feitos. O que ocorre? Por analogia, se observamos diariamente o surgimento de robôs capazes de subir em árvores cada vez mais altas e de modo cada vez mais rápido, nada disso nos leva a pensar que estão cada vez mais próximos de alcançar a lua. Essas capacidades têm propriedades comuns (e.g. ambas envolvem “ir pra cima”), mas as habilidades requeridas para subir em árvores são claramente diferentes das que permitem alcançar a lua.

No caso de atividades intelectuais, contudo, essa distinção é mais difícil de enxergar, e isso está por trás de várias promessas e previsões alarmistas. Em 2016, por exemplo, o influente pesquisador Geoffrey Hinton disse que deveríamos parar de treinar radiologistas, dado o desempenho superior obtido por IAs no diagnóstico por imagem. Na mesma linha, desde 2014 Elon Musk afirma que carros completamente autônomos estão há 1-2 anos de distância. Estamos em 2025, e radiologistas continuam a dirigir seus próprios carros para o trabalho ou para a faculdade. O que está por trás de previsões tão desastradas? Bem, ser um radiologista envolve mais que analisar padrões 2D em imagens. Eles estudam a dinâmica cerebral, articulam o que veem com essa dinâmica e, por isso, conseguem reconhecer também condições obscuras ou raras, ainda que só a tenham encontrado uma vez na vida. Por sua vez, ser motorista implica lidar com número ilimitado de fatores, inclusive aqueles associados à psicologia humana. Pedestres e motoristas, por exemplo, rotineiramente fazem “acordos” por meio de olhares ou acenos discretos, indicando se e quando é seguro ao pedestre passar na frente do veículo, ainda que em movimento. Nada disso está ao alcance das tecnologias atuais, mas o ponto mais importante é outro: o erro de Hinton, Musk e de inúmeros entusiastas é olhar para robôs que sobem em árvores e fazer predições que supõem a capacidade de chegar à lua, sem perceber que se tratam de habilidades profundamente distintas.

A história da IA é repleta de promessas grandiosas e sugestões de que estamos “quase lá”. Mesmo que nunca se cumpram plenamente, elas servem para sustentar investimentos por prazos superiores aos tipicamente toleráveis. Certamente podemos discutir se dessa vez será diferente, mas não faltam sinais de cansaço do paradigma tecnológico contemporâneo. Ainda que só estejamos começando a explorar todas as possibilidades de produtos e serviços que se utilizam das tecnologias atuais, os avanços nas pesquisas de base são cada vez mais lentos, modestos e custosos. Promessas de grandes revoluções cedem lugar a anúncios de avanços discretos e menos empolgantes. Por isso, poucos especialistas acreditam que criaremos uma AGI apenas fazendo mais do que já fazemos e sem o auxílio de novos insights, que podem aparecer entre amanhã e nunca.

Se a AGI ainda é apenas um sonho, parece que continuamos necessários ao mundo do trabalho. Podemos relaxar, então? Infelizmente, não.

Numa perspectiva funcional, o que significa ser um programador, radiologista, ou professor, depende de como estas atividades se estruturam no interior das instituições e práticas socio-econômicas sedimentadas. Tais estruturas especificam o que se espera que um profissional conheça, que responsabilidades lhe cabem, e assim por diante. Ter uma profissão é, com efeito, assumir determinada posição nessa engrenagem.

Quando nos concentramos em especular os efeitos de uma hipotética AGI, deixamos em segundo plano os efeitos que a IA pode ter sobre essa estrutura aqui e agora. Ainda que seja inalcançável emular um motorista humano sem uma AGI, por exemplo, é possível reestruturar o ambiente urbano de modo que seja navegável pela atual tecnologia. Podemos criar regiões inteiras que evitem fatores difíceis de tratar (pedestres, ciclistas, etc.), ou que reduzam substancialmente as condições atípicas. Fizemos isso com maquinistas de trens e ascensoristas em elevadores, e talvez consigamos fazer isso com motoristas de carros de passeio.

Essa possibilidade se apresenta também de modo não planejado. Algumas profissões (professores, advogados, programadores…), já enfrentam cobranças por produtividade que supõem a disponibilidade de IAs. Essa adoção ocorre a despeito de suas deficiências, consideradas transitórias ou contornáveis. Assim, o acolhimento da IA não se dá apenas por suas capacidades, mas também pela reconfiguração do trabalho a fim de acomodar suas limitações. Não bastasse, esse é um cenário fértil para efeitos indesejados, como a ampliação de desigualdades sociais. O papel da IA numa dada profissão depende também do quanto ele interessa a certos grupos com recursos disponíveis para fazer valer suas preferências.

Segue-se de tudo isso que a IA pode gerar mudanças profundas mesmo que nunca consiga produzir uma AGI. A projeção de improváveis cenários catastróficos não pode nos deixar insensíveis ao que já acontece diante de nossos olhos, e a história nos ensina que esse acúmulo paulatino de mudanças discretas não é menos drástico ou brutal que uma revolução, apenas mais fácil de ignorar.